(Mário Quintana)

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sexta-feira, 28 de maio de 2010

Um Beijo, de Abius e Abricós

© Walmir Lima
Walmir, aos dois anos, e o irmão, Valdir
Av. Ana Costa 290, Santos


Meu primeiro namoro não passou de um flerte.

Eu devia ter, quando muito, entre cinco e seis anos de idade. Eu era apenas um menino de Santos.

Minha casa, um casarão antigo de seis quartos, ficava no 290 da Avenida Ana Costa, ao lado de uma casa idêntica, onde havia o chamado Clube de Arte, que era uma entidade onde se reuniam artistas plásticos de variadas vertentes - pintores, escultores, artistas cênicos - para aulas, produções e ensaios.

Eu, moleque levado, adorava pular o muro que nos separava do Clube de Arte. Do outro lado havia o Capeto, um pastor alemão capa preta, maior e mais pesado que eu e que montava guarda nos quintais do casarão.

Eu driblava o "adorável cãozinho" pulando do alto do muro, que separava as duas casas, direto para os galhos das árvores desse vizinho. Ali, então, pegava um monte de abricós e de abius, uma fruta pegagenta, porém suculenta, que é, talvez, a fruta exótica mais marcante da minha infância.

O problema era fazer o caminho de volta com uma só mão, tendo a outra a segurar uma tonelada das benditas frutas enroladas na camisa, agora amarrada feito sacola, e evitar cair direto nas presas da furiosa besta, que babava de raiva e gana de abocanhar os parcos glúteos do magricela insolente.

Meu primo Arthur, o Tuquinha, ficava do lado de cá, rindo e "torcendo, com certeza", para eu cair e ver o circo pegar fogo. Coisa de moleque mesmo.

Passar de uma árvore para outra, então, era a coisa mais estúpida que qualquer ser, minimamente são, poderia considerar. Mas eu fazia. Dá frio na espinha só de lembrar.

Como recompensa, as frutas eram devoradas, sofregamente, com o coração aos saltos, sentado, já de volta, no chão do nosso terreno, as costas encostadas no muro, e ríamos gostoso aos latidos enfurecidos do derrotado Capeto.

Mas, o que eu gostava mesmo era de ficar observando o movimento dos artistas e dos moradores que dava para se ver e ouvir através das janelas e do longo jardim frontal do Clube de Arte.

Certa feita, entrei no meu quarto e, num relance, vi, na janela da casa ao lado, um rosto feminino me fitando...

Ando de um lado para outro. O olhar me segue, docemente, persistente.

“Não é possível!”, pensei; o peito já palpitando.

Era Raquelzinha, a filha do Sr. Daniel, administrador e residente do Clube. E, assim, ficamos nos olhando, meiga, mas vividamente, por vários minutos, todos os dias que se seguiram.

Guardei segredo do namoro, por dias seguidos. Tinha descoberto as delícias do amor, mesmo sem saber que era, a um só tempo, sagrado e secreto – um amor inconsciente. No terceiro ou quarto dia, chamei minha mãe para comprovar. Mas, pedi-lhe que, para não se fazer notar, ficasse observando, pela fresta da porta.

Minha mãe, tão compreensiva como sempre foi, me explicou direitinho que o filhinho dela tinha vivido um momento de doce ilusão, apesar de que, aparentemente, era correspondido. Recebia, então, minha primeira aula das coisas do coração.

Findava-se assim, também, a aventura amorosa inaugural da minha vida.

Doce ilusão de minha infância - infância que os anos não trazem mais.

Desde então, aprendi que Nada é. Tudo depende de quem vê. Ilusões que morrem para renascer.

A vida me ensinaria, também, que não basta entender o olhar do outro. É fundamental ajudar o outro a decifrar, corretamente, o seu próprio olhar, com todos os enigmas, com toda sorte de exclamações, de interjeições, de interrogações e reticências que perpassam a vida de um ser humano.

Raquelzinha, de caso pensado ou não, acabaria me abrindo os olhos para ver melhor o olhar do outro. Esse o milagre, que haveria de facilitar minha convivência com o eterno feminino.

A crônica de minha vida é um testemunho incontestável das amizades que fiz e, agradecido, ainda faço no universo mitificado das mulheres.

Vinicius de Morais cantou a mulher amada - em qualquer sentido que se tome o verbo cantar - e disse: “A mulher é coisa mais bela e mais perfeita de toda a criação inumerável…”

Olavo Bilac cantou a mulher-mãe: “Ser mãe é desdobrar fibra por fibra o coração”.

Subscrevo, com o maior fervor, a exaltação da mulher em qualquer chave da escala humana. Amo-as, no esplendor dos meus sustenidos e no sussurro dos meus bemóis.

Tão partícipes da minha vida afetiva quanto tantos amigos que também andam me celebrando por todos os meus dias.

Meu passado não é uma ilusão de ótica. É uma indizível realidade. Tão concreta quanto o momento presente que estamos vivendo, juntos, agora.

Bendito seja o passado que me culmina de tantos amigos e de tantas amigas.

Duvido que haja neste mundo sentimento mais puro que a amizade. A amizade, que Armando Nogueira definiu como sendo “O amor sem segundas intenções”…

Bendito passado meu, labirinto que decifro, palmo a palmo, como as linhas das minhas mãos.

Passado meu! Aqui te fala um herdeiro sem jaça, Santista de raça, sem um pingo de cachaça. Quero te dizer que és a pátria amada de todos os meus abraços, de meus mormaços, de tão saudosos amassos, e de tão ardentes enlaços.

Revejo em ti, todos os meus passos, os meus descompassos - o canto primeiro de um certo sanhaço. És a utopia de meus devaneios, de meus anseios, de meus receios.

Em teu leito, deságuam todas as lágrimas de minha vida: Águas de Março, mágoas de Maio.

Palpitam em ti todos os meus ardores, os meus temores, as minhas dores, as minhas flores, de meus mil amores.

Passado meu, és testemunha dos livros que devorei, das cartas que nunca rasguei, dos versos que declamei, das pedras que já pisei, dos vôos em que me alcei, dos mares que naveguei, dos sonhos que embalei, dos lábios que já beijei, dos corpos que decorei, dos rostos que afaguei.

És, enfim, a testemunha jurada de tantos mundos por onde passei e de tantos outros por onde ainda passarei!

Desde aquele primeiro flerte, até o último "deixei de querer-te", muita água rolou - na ponte, por baixo; nas faces, abaixo...

Mas estou só começando, a viver cada dia, saboreando emoções, abricós e abius, e as mais doces frutas do caminho, porque, afinal, queridos amigos, parafraseando Carpinejar, “Envelheci! Tenho muita infância pela frente!”

A todos, um beijo pleno dos lampejos e dos ensejos da nossa eterna amizade.



- o 0 o -


(Aproveito agora para creditar um tributo ao falecido cronista esportivo, Armando Nogueira, em cujas palavras e belas formas de dizer muito me espelho e me identifico; de quem, nós, mortais, vez ou outra, temos de emprestar, já que, depois de Armando, muito pouco resta para ser dito)

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6 Comentários:

Anonymous Adelaide Fernandes disse...

Primo querido, amei ver vc nu, mesmo que ainda criança.

Nossa me bateu uma saudade da casa da vó Adelaide.

Mas amei tudo que li e vi, principalmente a nossa Alice que a cada dia está mais linda.

Beijocas cheias de saudade.

Adelaide

28 de maio de 2010 às 15:55  
Blogger Walmir Lima disse...

Oi, Dedê

Sou eu quem fica emocionado e feliz pela visita.

Lembrar de vocês, primos de muitas traquinagens, é um verdadeiro renascer em alegria a cada momento.

Bem que você lembrou: com tantos muros pra pular, e o apelo do nosso pomar e o do Clube de Arte, não é a toa que o Tuquinha (Arthur)
estava cheio de áreas sem cabelo na cabeça de tantos tombos que levávamos.

Mas mordida de cachorro na bunda, só levei uma, mas me rendeu 40 injeções, ultra doloridas, na barriga.

Beijão

28 de maio de 2010 às 16:03  
Blogger Anne M. Moor disse...

Walmir

kkkkkkkkkkkk Consigo te ver em cima da árvore com a camisa cheia de fruta :-)

Um dos meus sonhos de criança era ter uma casa na árvore. Eu vivia depindurada nas árvores brincando. Êta tempinho bem bom!

Beijos
Anne

28 de maio de 2010 às 19:04  
Blogger Ava disse...

Walmir, esse retorno ao passado, através de tantas lembranças, são momentos de puro enlevo.
Creio que todos nós temos nosso baú recheado de recordações de brincadeiras e traquinagens, e principamente desse tão puro e inocente primeiro amor...

Por acaso foi seu aniversário?

O texto me pareceu de alguém que está ficando mais velho, e aproveitando para fazer uma retrospectiva...rs

Se pelo sim, meu parabéns e continue a ser esse "gauche" romântico, rebelde e irreverente.

Se pelo não, escreveste um belo texto, onde transborda a emoção de um passado tão encantador.

Beijos!

29 de maio de 2010 às 21:05  
Blogger Jorge Lemos disse...

Menino Walmir


Despido totalmente o vemos, não criança, mas todas as crianças que um dia fomos.

Travessura maior é imaginar o mundo que criamos. Sinta, a cada instante, a saudade aumentando e o desejo de tocar no passado, pela vadia mente, mais presente.

Como escrever seu tempo? Só no buscar nos porões da mente as ternas paisagens que coloriram vidas.

A construção do seu texto me devolveu o meu "Pé de Cajá Manga", aquele velho confidente que um dia se viu abatido pelo corte de um machado, mas que se fez eterno pela lembrança do sabor que guardo dos seus frutos.

Menino, gosto da singeleza do seu texto. Ele mostra vida palpável, concreta, não artificial onde o jogo de palavras não mostra o real.

Digo com clareza e com respeito: surpreendi-me como aos poucos vamos todos nos despindo!

Disse eu, certa feita, num poema:

"Se o peito é como a terra bem lavrada, o amor um fruto suculento e farto".

Só aos poetas cabe o significado da lembrança.

Aos poucos estamos nos despindo!

Aflito, o nosso interior exige que rasguemos nossas vestes.

Jorge Lemos

30 de maio de 2010 às 12:25  
Blogger Walmir Lima disse...

Cada comentário e vocês, meus queridos amigos, é mais um lindo poema a compor a antologia da minha vida.

Um beijo com afeto

19 de junho de 2010 às 21:02  


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6 Comentários:

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